15 de dezembro de 1996. O dia em que aquilo não podia ter acontecido. O dia em que Rodrigo Fabri deveria ter sido menos fominha. O dia em que César tinha que ter cabeceado para o lado. O dia em que Aílton não podia ter acertado aquele chute. O dia que era o melhor da minha vida, até virar o pior.
Hoje, faz 20 anos que a Portuguesa perdeu o título brasileiro para o Grêmio. Aquele gol aos 39 do segundo tempo, quando o jogo estava morto, o estádio calado, o Grêmio, perdido. O dia em que vimos que nunca seríamos.
Eram outros tempos do futebol brasileiro. Saudoso mata-mata entre os melhores times, sistema que permitia aos pequenos e médios sonhar com o título nacional.
A Portuguesa se encontrou com uma classificação improvável, adquiriu a ”sorte de campeã” naquele fim de ano, ganhou a torcida do país inteiro (velhos tempos em que o país via futebol, não só o próprio time). Esteve a 5 minutos de conquistar o título que faria jus ao tamanho do clube, ao que a Lusa havia representado para o futebol do país ao longo do século.
Tivesse sido campeã do Brasil em 1996, a Portuguesa poderia deixar seus torcedores morrerem em paz. Ela própria poderia morrer em paz.
Hoje, o clube definha. Está quebrado, largado, sem perspectivas. Ser campeã em 96 teria mudado esse destino? Sinceramente, acredito que não. Mas tudo teria sido diferente para os sofridos torcedores lusos, fiéis, chatos, poucos, apaixonados. Nenhuma discussão na mesa de bar ou no churrasco entre amigos teria sido igual. O ”orgulho de ser Lusa”, como andou escrito na camisa, seria outro.
Entre 1995 e 1998, a Portuguesa foi grande de novo, como no meio do século. Foi um repique que, bem aproveitado, teria mudado a história do clube. Mas, claro, nunca algo foi bem aproveitado pelos administradores da Lusa, que variaram entre burros e bandidos.
A volta de Candinho, no fim de 1994, forjou um time que seria o melhor do Estado em 1995, apesar de ter ficado sem título. E cimentou as bases para o digno campeonato feito em 96.
Foi um campeonato em que a Portuguesa flertou com o G-8. Até que perdeu mandos de campo na reta final. Isso porque, após um empate contra o Vitória no Canindé, no comecinho do campeonato, em um jogo em que o time foi estuprado por um árbitro carioca chamado Léo Feldman, a torcida jogou o diabo para o campo quando a partida acabou. Eu nunca fui de subir no alambrado. Naquele dia, havia subido. Bom, eu tinha 17 anos, a gente fazia essas coisas erradas.
A coisa degringolou nas últimas rodadas, e a Portuguesa jogaria a última em Curitiba, contra o Botafogo. Precisava ganhar e que pelo menos três times que estavam à frente na tabela tropeçassem.
Eu fazia a primeira prova da primeira fase da Fuvest. Um momento importante da minha vida, digamos, pois a partir dali eu consegui uma vaga para estudar jornalismo na USP, onde conheci a mãe das minhas filhas e mulher da minha vida, além de alguns dos melhores amigos que alguém pode ter.
Quando saí da prova, feliz com o desempenho, nem me lembrava mais do Brasileirão. Liguei de um orelhão para meu velho pai, ex-jogador aspirante da Lusa e um torcedor desiludido fazia tempo, para avisar que havia acabado a prova. Mas ele não queria saber da prova. ”Você não acredita! Está todo mundo perdendo e a Lusa ganhando!”.
Quando cheguei em casa, o Sport levava um saco, o Inter perdia do rebaixado Bragantino, a Lusa metia 4 no Botafogo e faltava somente o São Paulo não ganhar do Cruzeiro. Parreira era o técnico do São Paulo. Ouvi os minutos finais em um radinho de pilha, como se fazia nos bons tempos. Muller, acho, perdeu um gol feito no final. E a Lusa entrou. Surreal.
Clemer; Walmir, Emerson, César e Zé Roberto; Capitão, Gallo, Caio e Zinho; Tico e Rodrigo Fabri. Este era o time da Portuguesa no campeonato.
Eu considerava Walmir o pior lateral do mundo. Zé Roberto era ”minha” descoberta. Eu que havia visto aquele moleque subir para o time principal em 94 e falava para todo mundo. ”O lateral-esquerdo da Portuguesa é um craque, é o melhor lateral que já tivemos”. Eu achava Zé Roberto tão bom que em todos os jogos fazia questão de ir atrás do banco de reservas gritar para Candinho. ”Bota o Zé no meio, seu burro! Bota ele no meiooooooo”.
Eis que na véspera do mata-mata, Zinho, aquele que era do Sport de Recife, se machucou. E Candinho colocou Zé Roberto no meio de campo. A simples mudança que quase fez a Portuguesa ganhar o campeonato.
Carlos Roberto entrou na lateral esquerda. Walmir, o grosso, fez uma partida de gênio nas quartas de final contra o Cruzeiro, o primeiro da fase de pontos corridos. E Zé Roberto comeu a bola. Alex Alves, o baianinho, que Deus o tenha, havia feito um campeonato ridículo. mas entrou no lugar de Tico e meteu dois gols. A Portuguesa foi obrigada a jogar no Morumbi, por uma daquelas ridículas regras de capacidade mínima de estádio.
Em vez de 15 mil pessoas no Canindé, foram 7 mil ao Morumbi. Meu primo Renatinho, torcedor do Palmeiras (isso me lembra que ainda nem dei parabéns a ele), me pegou no cursinho e fomos ao Morumbi. No meio do primeiro tempo, acabou a energia. Era um breu só. Gritávamos ”é, é, é, estádio é o Canindé!!”.
Foi um dos três maiores jogos que eu já vi da Portuguesa. O jogo perfeito. 3 a 0 naquele timaço do Cruzeiro. Êxtase. Esperança. Zé Roberto. O único ídolo que tive no futebol. Que grande é Zé Roberto.
O jogo de volta foi num sábado, eu vi na Globo. Nunca passava jogo da Portuguesa na Globo. Mas o mata-mata passava para o Brasil inteiro, isso que era legal no mata-mata. O Cruzeiro fez 1 a 0. Eu tinha certeza que seríamos eliminados. Mas não fomos.
Na semifinal, contra o Atlético Mineiro, o Galo tinha 478 jogadores pendurados para a partida de volta. Bateu impiedosamente o jogo todo. Me lembro do árbitro, Sidrack Marinho, dizer ao fim do jogo que havia economizado nos cartões para ”não estragar a semifinal”. Sim, minha memória não me deixa na mão. Léo Feldman. Sidrack. Castrilli. Já xinguei muito nessa vida.
O Atlético havia vencido todos os jogos no Mineirão naquele campeonato. Todos, exceto o clássico com o Cruzeiro. Ganhar só por 1 a 0 no Morumbi parecia fim de linha. O jogo de volta é o que meu irmão, Flavio, considera o jogo de sua vida. Outro irmão, Fernando, morava em Belo Horizonte. Eles foram juntos. Havia 100 e tantas mil pessoas. Eu fazia a segunda prova da primeira fase da Fuvest. E estava difícil demais pensar na prova. A carteira em que eu fiz o vestibular tinha escudos da Portuguesa e a escalação do time por todas as partes.
Quando acabei, corri para saber quando estava o jogo. Intervalo, 1 a 0 Atlético. Já era. Peguei carona com uma amiga para voltar para casa. Pedi o favor de uma vida para a mãe dela. ”Tia Rosa, será que eu posso ouvir o jogo da Portuguesa no rádio?”. No caminho, saíram os dois gols da virada. Eu gritava como um louco com metade do corpo para fora do carro. As amigas não entenderam nada. Quando cheguei em casa, liguei a TV e o Atlético empatou. Desliguei a TV. Ouvi o resto no rádio. Manias.
Era surreal demais ver a Portuguesa, a minha Portuguesinha, na final do campeonato.
Na segunda-feira, eu fiquei seis horas em uma fila debaixo de Sol no Canindé para conseguir ingresso para a final. Havia gente com camisas de todos os times. Não consegui os ingressos. Fiquei puto. Me parecia injusto um monte de gente estranha ir e eu não ver a final. Mas o Flavio conseguiu ingressos sei lá como, acho que com alguém na Jovem Pan, onde ele trabalhava na época. Foi um daqueles dias de chuva absurda em São Paulo. Não sei como cheguei ao Morumbi. No intervalo do jogo, chegava gente e mais gente no estádio. A cidade estava alagada.
Quando Gallo meteu o gol de falta, o primeiro, Flavio chorava copiosamente. Eu nem lembro direito daquele jogo. Era tudo realmente muito surreal.
No Terceiro Tempo da Pan, Milton Neves perguntava a cada um da equipe qual era a chance de título da Portuguesa. Wanderley Nogueira respondeu: ”100%!”. Aaaa, Wanderley… você não podia ter feito isso comigo! Eu acreditei em você. Como era boa, a Jovem Pan.
Quando acabou a partida, meu irmão me levou para casa e falou. ”Domingo, vamos a Porto Alegre”. Mas domingo eu tinha vestibular da PUC. Me lembro de ter chegado para o meu pai no dia seguinte, ele estava na sala. Eu expliquei que haveria a prova domingo, mas queria saber o que ele achava de eu ir a Porto Alegre para a final e perder a prova…
”PUC?? Que PUC o quê, rapaz… domingo é final de campeonato, porra! Depois a gente vê esse negócio de faculdade.”
E chegamos ao 15 de dezembro de 1996. Vinte anos.
Vinte anos.
Meu irmão me pegou em casa com um Karmann Ghia vermelho que eu não sei se ele ainda tem. O avião sairia de Cumbica, não tinha Waze, estava um trânsito de lascar. Ele dirigiu como um alucinado, subiu em calçada, fez o diabo. Chegamos em Cumbica e o saguão do aeroporto estava abarrotado de torcedores e bandeiras. Era a coisa mais linda que já tinha visto. Não era um avião partindo para Porto Alegre. Eram muitos!
No avião, um rapaz veio cumprimentar meu irmão e se apresentou. ”Oi Flavio, meu nome é Eduardo Affonso, sou repórter da rádio Bandeirantes”. Edu, Edu, grande Edu. Ele também estava indo para o jogo de sua vida. Os dois trabalhariam juntos muitos anos depois na falecida rádio Eldorado/ESPN.
Quando chegamos em Porto Alegre, os taxistas fizeram carreata atrás dos nossos ônibus. Fiquei com a impressão de que todos os taxistas da cidade eram torcedores do Inter. Fomos a uma churrascaria. Não comi muito, estava nervoso. Mas foi divertidíssimo. Era o melhor dia da minha vida. Um sonho. Nunca havia tido nada igual.
Não eram tempos de celular e smartphone. Eu não tenho uma foto sequer disso tudo ou do jogo. Nada. Zero. Eu não tenho nem aquela camisa da Lusa, com o patrocínio dos Armarinhos Fernando.
Já no Olímpico, as coisas começaram a mudar. Um homem negro entrou na área da torcida da Lusa com a camisa do Inter. Do outro lado da grade, a poucos metros dele e de mim, uma mulher, loira, branca, com um filho de uns 7 ou 8 anos ao lado dela, imitava um macaco e gritava ”macaco, macaco”, fazendo aquele tradicional som de chimpanzé. Eu nunca tinha visto aquilo. Me deu vontade de vomitar. Me pergunto o que virou aquele garoto. Vi também uma bandeira azul clara com o símbolo da Luftwaffe, a aviação nazista de Hitler. Não quero aqui generalizar ou rotular a torcida do Grêmio. Mas foram coisas que me marcaram.
Vi o gol de Paulo Nunes logo no começo, o Olímpico urrava. Meu pai fala até hoje que estava impedido, mas nunca houve uma tomada lateral para vermos. Eu acho que não estava. Eram escanteios e mais escanteios.
Mas o jogo acalmou no segundo tempo. Nada acontecia. Eu só fui ver de novo aquela partida cinco anos depois, quando fazia meu TCC, o trabalho de conclusão de curso para me formar na época. Foi uma espécie de documentário em vídeo que, mais ou menos, previa tudo o que está acontecendo agora com a Portuguesa. Na banca do meu TCC, Paulo Calçade e Helvídio Mattos, dois monstros com quem eu teria o prazer de trabalhar anos depois, na ESPN.
Ao rever aquele jogo, chorando, logicamente, foi possível perceber como, à parte os vários escanteios no primeiro tempo, o Grêmio não jogou nada. A Portuguesa teve dois contra ataques claríssimos no segundo tempo, de dois contra um, e Rodrigo Fabri preferiu tentar o drible nos dois lances, com Alex Alves livre a poucos metros de distância. O segundo gol nasce em um chutão desesperado de Carlos Miguel para a área.
A Lusa jogou melhor em Porto Alegre do que em São Paulo. Mas na hora, no estádio, você não percebe nada disso. Sonho ou pesadelo? Sonho ou pesadelo? Olhei no meu relógio e o cronômetro marcava 39 minutos. Olhei para frente, a bola estava passando rente ao corpo de Capitão e estufando a rede de Clemer. Eu estava atrás do gol. Eu acho que já sonhei com Clemer espalmando aquela bola. Com Capitão dando um passo para o lado. Com Alex Alves bloqueando o lançamento despretensioso de Carlos Miguel. Com Aílton chutando a bola ali onde estava nossa brava torcida, recheada também de atleticanos e cruzeirenses, vítimas da Lusa no mata-mata, mas que tinham abraçado o clube quando torciam pela Lusa contra o rival.
Eu sentei e chorei. Chorei, chorei, chorei, chorei, chorei. E, claro, agora choro enquanto escrevo.
Nunca seremos?
Meu irmão resistiu bravamente naqueles minutos finais, que eu acabei nem vendo. Uma meia hora depois do jogo, sentou em uma cadeira do Olímpico e chorou. Chorou, chorou, chorou, chorou.
Uma hora depois do jogo, estádio vazio, começaram a voar garrafas do lado de fora do Olímpico para dentro, onde estávamos. O ser humano deu errado.
A imagem que tenho é de muitos velhinhos sentados, encostados nas colunas de concreto do estádio, desolados. E eu pensava. Eles nunca mais verão a Lusa em uma final. Àquela altura, tinha dó deles, não de mim. Vinte anos. Daqui a muito pouco, o velhinho serei eu.
Um dia, em Portugal, acho, eu falei para Felipão. A única coisa que você não podia ter feito na vida era ter ganhado aquela final contra a Lusa. Ele bufou. ”Que é que eu vou fazer, tchê?”
A volta para casa foi terrível. Ao chegar em casa, minha mãe, sensibilidade zero, disse: ”essa Lusa não tem jeito mesmo, não vai ganhar nunca”. Fiquei muito bravo com ela. Devo ter ficado uns três dias de luto, comendo mal, dormindo mal. O futebol não deveria fazer essas coisas com a gente. Mas com 17 anos… saindo da escola, onde havia sido tripudiado a vida inteira pelo time por quem torcia…
Me lembro de ter sido um dos oradores da turma na formatura do colegial. De ter pego uma enorme bandeira da Portuguesa e, ao final da cerimônia, subido com ela no palco. Alguns dos presentes ali aplaudiram.
Vinte anos depois, Zé Roberto finalmente ganhou seu Brasileiro, com a camisa do Palmeiras. Vinte anos depois, o Grêmio finalmente voltou a disputar uma decisão em casa e ser campeão diante de sua torcida.
Me lembro de tudo. Não precisei pesquisar nada para escrever este enorme texto. Me lembro das faces, das expressões, das frases, das cores. Me lembro do que era torcer apaixonadamente, coisa que não faço mais faz tempo. Me lembro da maior tristeza que já tive na vida – graças a Deus, nunca passei por qualquer tragédia familiar. Me lembro de achar, pouco depois, que aquela tinha sido a única e última chance. Lamento estar com a razão.
15 de dezembro de 1996. O dia da cicatriz mais profunda, entre as tantas cicatrizes dos torcedores da Portuguesa.
O dia que poderia ter mudado tanta coisa.
O dia do ”nunca seremos”.
Por Julio Gomes, para o seu blog no UOL